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A inteligência artificial (IA) tem vindo a afirmar-se como uma tecnologia com potencial significativo na transformação digital da administração pública, influenciando de forma progressiva a maneira como o Estado organiza, gere e presta os seus serviços essenciais. Da saúde à justiça, passando pela educação, segurança, administração fiscal ou gestão administrativa, a adoção de soluções baseadas em IA está a transformar procedimentos e a redefinir a relação entre as instituições públicas e os cidadãos.
Este movimento, embora promissor, suscita desafios significativos que não podem ser ignorados. A origem e o controlo dos sistemas utilizados, a opacidade dos algoritmos, a conformidade legal e a proteção dos direitos fundamentais são apenas algumas das questões que a administração pública enfrenta neste novo cenário. Torna-se, por isso, imperativo garantir que a adoção da IA se faz em condições de soberania tecnológica, segurança jurídica e legitimidade democrática.
Importa assegurar que as decisões públicas, cada vez mais mediadas por tecnologia, mantêm os princípios fundamentais da boa administração: transparência, legalidade, responsabilidade e serviço ao interesse público.
> dependência
A dependência tecnológica face a fornecedores externos, em especial aqueles sediados fora do espaço nacional ou europeu, representa um risco estrutural para o funcionamento e a autonomia da administração pública. Em particular, a utilização de soluções de inteligência artificial desenvolvidas e operadas por terceiros fora do controlo do Estado levanta questões quanto à supervisão direta dos sistemas, dos dados tratados e dos critérios de decisão aplicados.
Esta situação revela-se particularmente preocupante em setores sensíveis como a justiça, a saúde, a segurança pública ou a administração fiscal, onde a fiabilidade dos sistemas e a capacidade de resposta em tempo útil são determinantes para a salvaguarda de direitos e para o próprio funcionamento do Estado. A ausência de acesso ao código-fonte, a limitação da capacidade de auditoria e a dependência de contratos opacos reduzem a margem de manobra das autoridades públicas, criando vulnerabilidades operacionais, jurídicas e institucionais.
A utilização de sistemas de IA sujeitos a regimes jurídicos extraterritoriais levanta igualmente riscos de influência externa, com implicações políticas, económicas e institucionais. Leis como o Cloud Act dos EUA ou a Lei de Inteligência Nacional da China impõem obrigações às empresas tecnológicas que podem colidir com os princípios da soberania e da confidencialidade da informação pública.
> soberania
No contexto da administração pública, este tipo de riscos revestem-se de particular gravidade, uma vez que os sistemas em causa suportam funções essenciais do Estado, como a justiça, a gestão fiscal, a prestação de cuidados de saúde ou o controlo da ordem pública. Mesmo sem intenção explícita, a possibilidade de condicionar funcionalidades, retardar atualizações ou introduzir enviesamentos nos modelos decisórios compromete a neutralidade institucional e fragiliza a confiança pública.
A soberania sobre os dados públicos e a infraestrutura tecnológica do Estado constitui um pilar fundamental da governação democrática. A administração pública, enquanto gestora de grandes volumes de informação sensível, tem o dever de garantir que os dados recolhidos, tratados e armazenados no exercício das suas funções permanecem sob controlo efetivo e respeitam os princípios da legalidade, da finalidade e da proporcionalidade.
Sempre que dados relativos à saúde, à educação ou à justiça são processados em plataformas operadas fora da jurisdição nacional, a integridade do sistema administrativo é colocada em risco. Muitos modelos fundacionais de IA são treinados com dados recolhidos de forma massiva e opaca, frequentemente sem consentimento ou supervisão pública, comprometendo a legalidade e a qualidade das decisões suportadas por esses sistemas.
A administração fiscal, por exemplo, depende de dados rigorosos e atualizados para garantir justiça tributária e combater a evasão fiscal. A sua externalização tecnológica sem garantias adequadas poderia comprometer a eficácia do sistema fiscal e a confiança dos contribuintes.
O risco de instrumentalização da IA em contextos de desinformação, manipulação comunicacional ou influência política é cada vez mais real. A administração pública, pela sua natureza institucional, deve ser especialmente cautelosa na utilização de sistemas que podem ser explorados para fins que ultrapassam a sua missão de serviço público.
A proliferação de conteúdos gerados automaticamente, sejam textos, imagens ou perfis digitais, pode ser usada para criar perceções artificiais, enviesar o debate democrático ou influenciar decisões políticas e administrativas. A opacidade algorítmica dificulta a deteção destes fenómenos e compromete a capacidade de escrutínio por parte da sociedade civil, dos meios de comunicação e das próprias entidades fiscalizadoras.
Neste contexto, a administração deve assegurar que os sistemas de IA ao seu serviço são auditáveis, transparentes e sujeitos a avaliação independente, prevenindo abusos e protegendo a integridade do espaço público.
A ausência de harmonização entre os modelos normativos aplicáveis à IA representa um risco crescente para a legalidade e a eficácia da atuação administrativa. O enquadramento jurídico nacional e europeu estabelece exigências claras em matéria de proteção de dados, responsabilidade institucional e direitos dos cidadãos. No entanto, muitas das tecnologias disponíveis no mercado foram desenvolvidas em contextos regulatórios menos exigentes, o que pode gerar incompatibilidades graves.
Ao adotarem sistemas cuja conformidade legal não está assegurada, as entidades públicas expõem-se a litígios, ineficiências e falhas éticas, com impacto direto na credibilidade da administração.
> conclusão
A adoção da inteligência artificial pela administração pública deve ser orientada por uma estratégia sólida, baseada na soberania tecnológica, na conformidade legal e na proteção dos valores democráticos. Isto implica o reforço das capacidades internas do Estado, o investimento em infraestruturas tecnológicas próprias, a promoção de soluções auditáveis e interoperáveis, e o desenvolvimento de competências técnicas proprias nos organismos públicos.
A governação digital, para ser eficaz e legítima, deve garantir que a tecnologia está verdadeiramente ao serviço do interesse público e não de lógicas externas, comerciais ou geopolíticas.
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